MANIAC, de Benjamin Labatut, é uma mistura de romance biográfico sobre a vida de John von Neumann e reportagem new journalism sobre inteligência artificial (em especial, sobre o momento em que ela dominou o jogo de Go).
Labatut mantém o tom de Quando deixamos de entender o mundo, seu primeiro grande sucesso. Ele fala sobre ciência como alguém que conhece o tema – mas que conhece também os limites a partir dos quais uma teoria pode virar uma grande sopa de letrinhas. Para completar, ele fala com muitas vozes: a história do livro é narrada, a cada capítulo, por um personagem diferente. De Richard Feynman a Marina von Neumann (a filha do marciano, segundo ela mesma), as vozes e pontos de vista vão se alternando à medida que a história avança.
O livro tem algumas cenas memoráveis. Em uma delas, o jovem von Neumann, ex-aluno do matemático David Hilbert, está à frente de um congresso de matemáticos em Königsberg. O congresso está cheio de seguidores de Hilbert, conhecido por tentar provar que a matemática podia ser um sistema completo, consistente etc.. A tese de doutorado de von Neumann fazia parte do grande projeto de Hilbert sobre o que a matemática podia ser.
No fim do último dia do congresso, um tímido estudante de pós-graduação diz, meio gaguejando, que há afirmações verdadeiras que não podem ser provadas matematicamente. Pouca gente em volta entende o que isso quer dizer. Von Neumann é um deles. Ele ouve e, na mesma hora, entende que seu projeto de pesquisa (e o de Hilbert) acabou, foi refutado, não faz mais sentido.
Ele conversa com o estudante, um jovem de 24 anos chamado Kurt Gödel – que acabaria reconhecido como o maior lógico do século XX e que provaria matematicamente que nem tudo em matemática pode ser provado, que a matemática é incompleta (ou inconsistente, mas é melhor que seja incompleta).
Ver o primeiro Teorema da incompletude surgir no meio de uma conferência de discípulos de Hilbert é como ver Galileu gritar “Gira em torno do Sol!” em uma convenção de bispos medievais defensores geocentrismo (e não ser preso depois).
Outra cena ímpar do livro é a de von Neumann morrendo, com câncer no cérebro, internado em um hospital militar em Washington. Sua filha, Marina, então com 21 anos, recém saída da faculdade, vai visitá-lo. Ela se espanta por ver o pai tão apavorado com a ideia de que vai morrer em breve e pergunta: Você recomendou que o governo americano lançasse o arsenal atômico na União Soviética, você consegue contemplar com tranquilidade a morte de centenas de milhões de pessoas em um ataque nuclear preventivo mas não consegue encarar a própria morte com alguma calma ou dignidade?
“Isso é completamente diferente”, responde o von Neumann do texto (em que Marina von Neumann é a personagem narradora).
O livro passa pela criação do MANIAC (Mathematical Analyser, Numerical Integrator and Computer), o primeiro computador criado com uma arquitetura similar à dos computadores de hoje, fala sobre a Teoria dos jogos, criada por von Neumann com o economista Oskar Morgenstern e chega aos capítulos finais – já depois da morte de von Neumann – para discutir inteligência artificial.
Nessa parte, o personagem principal é Lee Sedol, o campeão coreano que enfrenta a rede neural AlphaGo, criada pela empresa DeepMind (do Goggle) para dominar completamente o jogo de Go. Em 2016, Lee aceitou o desafio de disputar cinco partidas de Go contra a rede de inteligência artificial. A descrição dessas partidas é, provavelmente, a parte mais emocionante do livro.
No mundo hiperquantificado e sem muitos critérios éticos que von Neumann ajudou a criar, decisões cada vez mais complexas poderiam ser automatizadas. O problema do Go, como lembram os criadores do AlphaGo, é que ele é muito mais amplo que o xadrez: tem muito mais cenários possíveis e não pode ser formalizado em um programa normal – como o xadrez foi, já nos tempos do MANIAC. Para fazer o computador jogar Go decentemente, foi preciso criar uma rede neural artificial e treiná-la jogando contra si mesma milhões de vezes. A rede é útil, é um avanço tecnológico, mas a forma como seus criadores resolveram demonstrar sua capacidade de vencer os humanos foi desoladora, foi fazê-la enfrentar uma espécie de símbolo do que a humanidade tem de melhor. Além de gênio do Go, Lee Sedol é muito mais simpático que Garry Kasparov, campeão de xadrez derrotado pelo computador Deep Blue nos anos 90.
A Google produziu um documentário sobre a disputa entre Lee e o AlphaGo, com acesso liberado no YouTube. Mas, mesmo no documentário da empresa dona do AlphaGo, é difícil não tomar partido vendo a tropa de técnicos da Inglaterra (e sabe-se lá de onde mais), com toda sua parafernalha eletrônica, enfrentar um tímido sul-coreano sentado em frente a um tabuleiro.
Lee é melhor que Kasparov. Enfrentando uma tecnologia 20 anos mais avançada que a que derrotou o jogador de xadrez, ele ganha – em uma virada espetacular – uma das cinco partidas. É só uma, mas ele prova que é possível sim vencer a máquina. E a reação da torcida – quando Lee vira o jogo – deixa claro que, na disputa com analistas de sistemas ingleses hiper-bem-financiados, ficamos do lado do pensador discreto que, mesmo quando perde, tem muito mais dignidade que os analistas da DeepMind ou que um von Neumann criador de bombas.