Marretadas à direita

Li há pouco que o presidente-eleito da Argentina encarnou o papel de monstro de seriado japonês e destruiu – a marretadas – uma maquete do palácio onde funciona o Banco Central argentino em uma de suas propagandas de campanha. Há três anos, quando tentei imaginar qual o limite do absurdo nas campanhas eleitorais em tempos de deep fake, escrevi um conto em que um candidato de extrema direita (no Brasil) fazia propagandas com um lança-chamas (em vez de serra elétrica) e com uma marreta. O lança-chamas era para acabar com árvores mesmo, mas a marreta era para demolir um palácio fake.

Sim, além de posar com a motosserra, o então candidato argentino comprou abertamente o discurso “destruir tudo isso que está aí” e, de um jeito bastante bizarro, ganhou a eleição usando esse discurso.

O conto (que é curto) começa no próximo parágrafo. A extrema direita é previsível?

“Eu vou destruir tudo!”, gritou o rosto enquadrado na tela do celular. A câmera se afastou mostrando o homem com uma roupa vermelha à prova de fogo – e se afastou ainda mais quando ele acendeu o lança-chamas e começou a queimar uma plantação de eucaliptos. “Tudo!!!”, gritou mais uma vez, rindo, enquanto a câmera 2 (que parecia estar atrás das chamas) dava um close em seu rosto.

A imagem sumiu e foi substituída por um fundo preto com o logo do candidato: um chicote cruzando uma metralhadora com uma caveira presa na ponta. Embaixo, em letras maiúsculas, estava seu bordão de campanha: “VOCÊS SERÃO PUNIDOS”. O texto parecia piscar discretamente alternando tons dourados e prateados.

No estúdio de gravação, Volando desligou o lança-chamas e olhou, perfeitamente tranquilo, para o fundo verde que ocupava o lugar da plantação em chamas. Um assessor engravatado se aproximou para ajuda-lo a tirar o lança-chamas das costas. “O segundo vídeo é o do palácio do governo”, disse o assessor.

“Não vai precisar do lança-chamas?”

“Não. Vamos fazer com uma marreta.”

Dois assistentes de produção apareceram, suados, arrastando um bloco de pedra cor-de-palácio-brasiliense de dois metros de altura.

“Eu vou destruir tudo”, disse Volando ao assessor, entre risadas.

*

A placa no quadro da portaria mostrava os últimos sete andares do prédio ocupados por Joselino, Camargo & associados.  Pelo nome, poderia ser um escritório de advocacia (mas era uma empresa de marketing).

“Eu não sei qual dos sete…”, comecei a dizer ao recepcionista no térreo.

“Então é a cobertura: é a entrada principal.”

No hall do elevador, no último andar, um cartaz de quase dois metros na parede mostrava uma senhora de cabelo curto com o dedo indicador apontando para a câmera. “JUST SAY NO!”, era o texto em letras maiúsculas não-serifadas embaixo da foto. No corredor até a sala de Madalena, mais cartazes com frases negativas e pessoas sorridentes: “TALK TO THE HAND!”, “THERE IS NO ALTERNATIVE”, “RESISTANCE IS USELESS!”, todos em inglês.

Uma recepcionista de cabelo escovinha vestindo um tubinho preto me acompanhou até a sala. Madalena sorriu quando entrei. Os sorrisos eram tão onipresentes que pensei em fechar a cara só para fugir da repetição.

“Você chegou na hora”, ela disse, como se isso fosse uma coisa espantosa.

“Eu sei”, e acho que soei como quem admite ter cometido um crime ou, pelo menos, uma indelicadeza.

“Vem. Vou te mostrar a empresa.”

Nos primeiros andares por onde passamos, a empresa era como todas as outras: salões bem iluminados com ar-condicionado, mesas de fórmica branca com computadores e garrafas térmicas grandes com café. No andar dos desenvolvedores de software havia pequenas salinhas envidraçadas onde eles podiam ouvir música enquanto trabalhavam.

No andar mais baixo, o último onde passamos, ficavam os estúdios: a parte onde os áudios e vídeos eram feitos. Boa parte da campanha de Volando tinha sido gravada naquele andar. Não vou dizer que foi bom ver como os memes eram feitos. Mas Madalena parecia muito feliz por me mostrar a empresa: orgulhosa, satisfeita, sem nenhum tipo de constrangimento com o que eles faziam.

Ainda não era meio-dia quando ela me levou de volta ao último andar. Lá, em uma sala individual, encontramos Matozinho, o redator-chefe. Se eles me contratassem, Matozinho seria meu chefe.

Ele vestia uma camisa social estampada em tons de verde escuro, quase como uma roupa de escritório camuflada. Usava calça jeans e uma corrente dourada no pescoço. A barba era bem cuidada e o cabelo parecia ter sido cortado na véspera. Idade aproximada: 35 anos.

“Madalena falou muito bem de você”, ele disse logo que Madalena nos apresentou.

“Vamos almoçar”, ela interrompeu, antes que eu pudesse agradecer ou retribuir os elogios.

Descemos os três para um restaurante a la carte a menos de um quarteirão do prédio da Joselino, Camargo & associados. Pedi salada: não gosto de fazer entrevistas de emprego com o estômago pesado.

“Você só vai comer isso?!”, implicou meu futuro chefe.

“Gosto de salada”, respondi tão sorridente quanto pude.

“Você sabe que aqui na JCA nós preparamos uns pratos bem pesados.”

“Eu sei. Todo mundo já viu as suas campanhas.”

“Se elas não fossem pesadas, ninguém ia ver.” 

“É.”

“Nós trabalhamos para isso. Mas não se preocupe: você não vai começar escrevendo para o Volando ou para o Carlinhos em São Paulo. Nós estamos fechando três campanhas na Região Norte. Quando os papéis estiverem assinados eu digo direito quem são.”

“Eles têm um perfil específico?”

“Não. Um deles é até de esquerda.”

Assinados os contratos, eu conheceria o candidato da minha campanha e o programador do TensorFlow 4d8, versão adaptada do programa da Google que eles usavam para decidir os rumos da eleição.

“Nós alimentamos a base com tudo que os seguidores de todos os candidatos postam nas redes. O TF4d8 diz o que enviar para cada um. Ele diz até  o que o candidato não deve, em hipótese alguma, dizer.”

“E vocês sempre fazem o que o TF4d8 diz?”

“Sempre.”

Foi a vez de Madalena explicar:

“Lembra de um político que não conseguia dizer ‘nuclear’? De outro que copiava slogans do partido nazista alemão?”

TF4d8?”

“Não. Eram programas mais antigos. Mas a ideia é a mesma”, disse Matozinho.

“Sem sentimentos de culpa?”

“Nós damos ao público o que ele pede. Se ele pedir ódio, ódio; terra plana, terra plana. É isso que o programa mapeia. Se o público não gosta de ‘nuclear’ mas atura bem um ‘núcular’, beleza.”

*

O suor escorre da testa de João Madeira enquanto ele aparafusa o quadro à parede. É um quadro branco, desses de sala de aula. A câmera se afasta e uma mulher com cara de diretora de escola diz:

“Ficou ótimo!”

“Vamos trocar todos”, diz João.

Corte para um fundo branco. Um samba da Mangueira vai ganhando volume enquanto o logo do candidato – pequeno e distante – vai se aproximando, parecendo cada vez maior. O logo tem um livro de matemática deitado e dois de ciências na vertical, com um estetoscópio casualmente largado por cima.

*

Matozinho olhou para a TV em sua sala, com a tela já completamente ocupada pelo logo:

 “O Madeira é candidato ao Senado. Ele não vai reformar escolas.”

“Ninguém liga para isso. O importante é ele aparecer construindo alguma coisa. O TF4d8 já disse que o Carlos Alexandre tem uma imagem de destruidor de coisas. Vamos contrapor oferecendo alguém que constrói”, respondi.

“O vídeo é bobinho. Não provoca emoção nenhuma. Você encaminharia isso para algum dos seus contatos de whatsapp?”

“Eu não posso pôr ele num carro de luxo atropelando mendigos. O outro candidato já fez isso.”

Madeira era um bom candidato. Gostei de ser indicado para trabalhar com ele. Seu único problema era estar em terceiro nas pesquisas, 20 pontos atrás de Carlos Alexandre, o primeiro colocado.

Faltavam 40 dias para as eleições quando Madeira assinou o contrato com a produtora e eu fui realocado para trabalhar com ele. Era mais fácil. Fazer campanha para um candidato do Rio de Janeiro parecia mais natural para mim.

“Agora não esquece: os cariocas são tão ruins quanto os roraimenses. Nada de campanha boazinha”, me disse Madalena quando confirmaram minha transferência.

Mas eu estava fazendo uma campanha boazinha. E ela não funcionava. Os três primeiros vídeos tiveram efeito nulo nas redes sociais e nas pesquisas: não se espalhavam e não traziam votos.

“O que vamos fazer?”, perguntou Madeira em nossa segunda reunião de pauta.

“Explodam os nazistas”, disse Matozinho num tom de voz tão cândido que, por um segundo, pude imagina-lo dando aula para uma turma de pré-primário.

“Como assim?”, perguntou o candidato.

“Façam um vídeo sangrento com o Carlos Alexandre e o… qual é o nome daquele outro?”

“Wiliamson.”

“Isso: o Carlos e o Wiliamson sendo linchados pela população ou levando uns tapas num ringue de MMA.”

“Mas isso não tem nada a ver com política”, comecei a reclamar.

“Tem sim”, se animou Madeira.

“O TF4d8 diz que eles têm queixo de vidro”, completou meu chefe.

“Vamos começar com o MMA. Tem uma academia a duas quadras daqui. Dá pra filmar no ringue deles. Já alugamos coisas deles antes”, disse Madalena.

“E os dublês?”, perguntei.

“Fala com o Tércio lá da produção. Ele também tem um coreógrafo, um cara de kung fu. A gente já trabalhou com ele.”

*

 “Com o apoio de Volando, eu vou fazer mais!”, diz em tom duro Carlos Alexandre, no meio do ringue.

Mal ele termina a frase, um chute atinge seu rosto no queixo e na bochecha. O rosto vai se deformando em câmera lenta enquanto o pé de João Madeira o atinge.

A cena se acelera de novo, João gira sobre o próprio eixo e acerta outro chute, agora na barriga de Carlos, arremessando-o contra as grades do octógono.

“Eu vou te pegar!”, grita Wiliamson, pulando dentro do ringue no mesmo centésimo em que Carlos Alexandre cai desacordado.

Ele parte para cima de João Madeira, mas é derrubado por uma rasteira antes que suas mãos consigam chegar perto do candidato.

Wiliamson solta um grito enquanto cai no chão e a câmera fecha no sorriso quase canastrão de Madeira.

“Madeira, o dragão do Senado”, diz a voz em off enquanto o número do candidato é estampado na tela.

A música de fundo é The eye of the tiger.

*

O vídeo, feito com lutadores profissionais e técnicas de deep fake, viralizou em segundos. Ele fez Madeira ultrapassar Wiliamson e ficar a cinco pontos de Carlos Alexandre. O vídeo tinha um jeitão de filme de kung fu antigo, com um tempero à Van Damme: brega mas engraçado. Vi muitas pessoas gargalhando enquanto assistiam.

Não podíamos perder tempo. A eleição estava ao alcance das mãos apesar de, então, faltarem cinco dias para a votação.

Resolvemos apostar no linchamento. O segundo vídeo teria Madeira comandando uma turba furiosa: todos prontos para espancar seu adversário com o que tivessem nas mãos. Bom, é melhor passar à cena:

*

Exterior, noite, rua transversal mal iluminada no centro da cidade. Carlos Alexandre e dois assessores correm apavorados pisando em poças e derrubando latas de lixo. Atrás deles, com passos firmes e olhar convicto, Madeira segue à frente de dezenas de pessoas, que gritam e gesticulam parecendo muito irritadas.

“A sua hora chegou, Carlos Alexandre!”

Carlos Alexandre e seus assessores param em frente a uma grade: a rua está bloqueada e eles não têm para onde fugir.

Madeira acena com a cabeça e a multidão sai em disparada para atacar o outro candidato.

Os berros da turba se misturam com os gritos de Carlos Alexandre & companhia e a câmera se desvia para o alto de um prédio ao fundo.

O texto “AGORA É A NOSSA VEZ” aparece em vermelho, carimbado na tela, enquanto os gritos do candidato governista parecem aumentar de volume ao fundo.

*

João Madeira virou senador e assinou um contrato de manutenção de imagem com a JCA. Agora produzimos dois vídeos por semana mostrando O dragão do Senado para seus eleitores (sempre da forma mais peculiar possível). 

Os vídeos são enviados por Madeira por todas as suas redes sociais e impulsionados (são publicidade paga) para aparecer também para não-seguidores do senador. Em algumas redes, podemos escolher o perfil desses não-seguidores, o que, é claro, é feito segundo as ordens do TF4d8.

Banco Central da Argentina.