A ideia é causar sofrimento de propósito

Há 100 anos, na Itália, Mussolini implementou seu programa de austeridade fiscal. Na Inglaterra, na mesma época, os conservadores também cortaram gastos sociais e forçaram a queda na demanda. Não que essa fosse sua única alternativa, mas era o jeito mais eficiente de sufocar os movimentos sindicais italianos e de acabar com as greves inglesas. Com a economia encolhendo, os gastos sociais cortados e o desemprego em níveis altos, os trabalhadores perderam todo seu poder de barganha e aceitaram os empregos mal pagos que os empresários ofereceram. A política de austeridade, então, atingiu seu objetivo.

O que hoje nós chamamos de políticas de austeridade não são ideias novas. Elas são bem antigas e costumam ser adotadas exatamente nas horas em que a participação dos salários no PIB está crescendo e as reivindicações da população estão ganhado mais força. Parece familiar?

Quem apresenta essa análise, no caso da Itália fascista e da Inglaterra imperial, é a economista italiana Clara Mattei. Em seu livro A Ordem do Capital, publicado no Brasil no fim do ano passado, ela mostra como políticas tão destrutivas como as da austeridade fiscal foram transformadas no discurso padrão de economistas cerca de 100 anos atrás. Não é uma história agradável.

A austeridade, com sua forte contração da demanda, é a culpada pela Grande depressão dos anos 30 do século passado. Nem por isso os economistas deixaram de recomendá-la. Essa ‘recomendação dos especialistas’ é uma parte indispensável da receita para fazer com que uma política que causa tanto sofrimento possa ser implantada em tantos países. “(…) para persistir, a austeridade precisa de especialistas dispostos a falar de suas virtudes. Essa relação se mantém verdadeira, ainda que com um elenco sempre renovado de figuras tecnocráticas”, diz Mattei. O marketing da austeridade tem muito espaço nos jornais e noticiários de TV, com muitos ex-ministros e colunistas para repetir seus dogmas.

O papel desses economistas é apresentar a austeridade como o produto de uma “ciência pura”, como se eles fossem os sábios arautos dessa ciência: os encarregados de levar a luz aos incultos.

A lógica por trás da austeridade é muito apelativa: para resolver nossos problemas é preciso consumir menos e trabalhar mais. Mas o velho John Maynard Keynes mostrou que, se todos fizerem isso ao mesmo tempo, a economia quebra por falta de demanda (o consumo de uma pessoa é, normalmente, a produção de outra). Então, quando economistas austeros propõem essa política, é bom deixar claro quem eles esperam que trabalhe mais e consuma menos. Eles mesmos propõem a política brindando com vinho importado.

O aumento da tecnologia ao longo do tempo deveria nos permitir viver cada vez melhor e com menos horas de trabalho. Mas hoje a sensação geral é que temos que trabalhar cada vez mais e pagar aluguéis mais caros enquanto vemos nossos salários comprarem cada vez menos bens e serviços.

Isso, é claro, acontece por conta de uma política austera, de pisar no freio dos juros altos e do corte de gasto público – obrigando uma parte da população a consumir menos (sem emprego) e trabalhar mais (aceitando ganhar pouco para conseguir ter trabalho). O corte de gastos geralmente é seletivo: nunca faltam incentivos e isenções fiscais para empresas e para seus donos.

O enfoque de Mattei – destacando a austeridade como característica comum de regimes tão diferentes quanto o fascismo de Mussolini e o liberalismo da Inglaterra dos anos 20 – ajuda a dar clareza sobre como a austeridade é usada para forçar pessoas a um sacrifício que não querem mas que – graças às políticas austeras – não têm como recusar. O bem estar da população não está na conta dos economistas pró-austeridade. Na prática, eles defendem os interesses de uma parte bastante pequena da população. A austeridade, no fim das contas, é uma espécie de controle social, de proteção contra a democracia.

Nos anos 70, quando a Inglaterra adotou de novo a política de austeridade, a pessoa que ressuscitou essa política (a então primeira-ministra Margareth Thatcher) justificava as demissões, cortes de gastos, privatizações e afins com uma frase famosa: “There is no alternative”, não há alternativa. Ela não dizia que era bom, dizia que era o único jeito.

Isso é falso. Até hoje os ‘austeros’ de lá tentam cortar verbas do NHS, o SUS inglês, do mesmo jeito que os banqueiros daqui fazem lobby para “cortar as vinculações” do orçamento do SUS. Isso é muito cruel: mata algumas pessoas por falta de assistência e faz com que outras se sujeitem a trabalhos ruins e mal pagos para não morrer por falta de atendimento médico.

Aqui, enquanto os jornais defendem o equilíbrio orçamentário, bancos e famílias tradicionais embolsam dezenas de bilhões de reais – e fazem isso sorrindo para as câmeras. Eles poderiam pagar mais imposto em vez de ser isentos do Imposto de Renda sobre dividendos… É claro que alguma coisa está muito errada quando até um governo supostamente de esquerda adota um teto/arcabouço de gastos para… para ser austero, como exigem os bilionários locais.

Como escapamos disso? Não sei. Mas fiquei feliz por ler o livro de Mattei – que apresenta o problema de um jeito claro, direto e bem embasado. Um marqueteiro dos anos 90 resumiria nossa falta de perspectiva atual com a frase “É a austeridade, estúpidos”. Bom, parece que é isso mesmo.

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