Detetives selvagens em escala reduzida

O espírito da ficção científica é uma espécie de ensaio geral para Os detetives selvagens – que tem a mesma história, os mesmos personagens, o mesmo clima mas dezenas de narradores e centenas de páginas a mais.

Diferente de Detetives selvagensO espírito da ficção é um livro póstumo. É fácil supor que Roberto Bolaño o escreveu, guardou, viu que podia fazer um livro ainda melhor e então escreveu Detetives selvagens (um dos melhores livros que já li). Eu já tinha lido o Detetives quando li O espírito da ficção. Ler a primeira versão foi como acompanhar o processo de reescritura, mas de trás para frente, já sabendo como termina. E foi muito bom, foi ainda melhor porque O espírito da ficção tem frases como: “A vida toda acreditei que a Maldade, antes de estrear, ensaia suas piruetas em escala reduzida” que, é claro, saí da boca de um personagem, o mesmo que continua sua análise dizendo: “comparadas com os fetiches dos gringos, nossas revistas parecem o que são: bichos feridos.”

Esse personagem tinha compilado uma lista de revistas de poesia marginal do México nos anos 70 – onde a história dos dois livros acontece. Nesse trecho, ele está respondendo a um dos personagens principais, que listara os fetiches gringos: jogos de guerra, jogos de mesa, vídeos e lançamentos musicais. “Aqui, como era de se esperar, procuramos a droga e o hobby mais barato e mais patético: a poesia, as revistas de poesia (…)”.

O livro é uma história de amor adolescente (e uma história de poetas marginais dos tempos em que Bolaño morou no México). As imagens, muito vivas, parecem às vezes mais reais do que as que vemos todos os dias, fora dos livros. Uma das virtudes de Bolaño é a intensidade. Por isso o nome realismo visceral (que adotou para o movimento literário de seus personagens no Detetives selvagens) me voltava a cabeça o tempo todo enquanto lia O espírito da ficção. Os personagens principais são dois adolescentes (de 17 anos) que dividem um quarto no topo de um prédio na Cidade do México. Um deles escreve resenhas para revistas de pequena circulação enquanto o outro envia cartas para autores de ficção científica norte americanos. Eles são um pouco do que Bolaño foi em seus tempos de exílio: personagens sem dinheiro e com muita curiosidade, muita vontade de escrever sobre o que estão vendo.

Da insegurança dos primeiros namoros à sensibilidade dos personagens ao caos latino-americano da época, o livro consegue ser abrangente apesar de curto: a edição brasileira tem 184 páginas, passa longe das 624 do monumental Detetives Selvagens.

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