O efeito de xingar os eleitores

O mundo não é uma engrenagem: não sabemos o futuro e a História não “caminha inexoravelmente” em nenhuma direção. Mas às vezes dá para ter ideia do que algumas pessoas querem fazer – e dá para pensar em como vai ser se elas fizerem isso.

Minha impressão é de que vários ex-aliados do governo já perceberam que é perigoso para eles mesmos manter ideólogos sem escrúpulos no poder. Foi um aprendizado lento que, em alguns casos, ainda não terminou.

O governo, a princípio, adotou um comportamento “Don Corleone”, agredindo com o máximo de violência os seus “desertores”. Um aliado não podia deixar o governo e, se deixasse, seria atacado nas redes sociais, receberia ameaças por telefone etc.. Vimos isso com Moro, com a médica que quase foi ministra da saúde, enfim, vimos o governo atacando agressivamente pessoas que – de outra forma – poderiam voltar a ser seus aliados no futuro.

Queimar pontes é uma estratégia ruim. Mas o governo a usou em grande escala. Talvez a tenha usado para intimidar seus outros aliados, para fazer com que ficassem na base de apoio com medo do que aconteceria se saíssem.

Mas, em muitos casos, o governo saiu da própria base, como, por exemplo, quando o presidente saiu do PSL e o partido pôde deixar de ser seu apoiador incondicional.

Além de queimar pontes, o governo não levou em conta que alguns de seus apoiadores não se intimidavam com fake news disparada em massa. Foi o caso dos banqueiros. Eles pararam de apoiar publicamente o governo há tempos. Seus representantes mais visíveis fazem um discurso enviesado: dizem que apoiam as reformas, mas que o governo não vai mais aprovar reformas, que apoiam o ministro da economia, mas que mesmo isso é cada vez mais difícil… Nas próximas eleições, os bancos terão outro candidato e, no segundo turno, podem acabar apoiando o centrista moderado que vai disputar pelo PT, o ex-presidente Luiz Inácio (com quem sempre tiveram boas relações).

Mas banqueiros e moristas já são história antiga, de antes da pandemia. E o que a pandemia trouxe foi a lembrança de que imprevistos acontecem e os governos têm que ter pessoas aptas a lidar com eles. Então, o medo de represálias políticas deu espaço para o medo de uma crise contínua, de saúde pública, de estagnação econômica, de falta de perspectiva.

Isso quer dizer que empresários de outras atividades – mesmo os mais egoístas – perderam a simpatia pelo governo. Eleitores conservadores, vendo o morticínio atual, começaram a rever seu apoio. Não foram só os banqueiros que se deram conta do desastre.

Sobram os grileiros, os ruralistas, os militares e os grupos religiosos mais conservadores, ou seja, a velha bancada Boi, Bala e Bíblia.

Mas o apoio religioso não é mais tão garantido – se não entre os pastores, pelo menos entre as ovelhas. Boa parte delas disse ao Datafolha que votaria em Lula no segundo turno se a eleição fosse hoje. Talvez ver parentes morrendo de covid enquanto o presidente chama quem faz isolamento social de idiota esteja levando alguns deles a rever seu apoio.

Sobre os grileiros, se a Polícia Federal – com ordem do STF – conseguir investigar o ministro do meio ambiente e alguns dos grupos que ele favorece, talvez eles se retraiam um pouco. Não vão parar de apoiar um governo que permite que queimem tudo até a última planta, mas talvez invadam reservas indígenas com um pouco menos entusiasmo.

Quanto ao grupo da bala, acho que é o maior problema. Quem pode tirar parte deles da base do governo é o general da ativa que, até há pouco, comandava o ministério da saúde – e que nomeou para lá dezenas de militares. A submissão do general (que implementou políticas que levaram centenas de milhares de brasileiros à morte) pode constranger alguns de seus colegas. Mas isso é pouco. Comparado ao aumento de salários e à melhora nos planos de carreira, o constrangimento tem pouco poder para minar o apoio ao governo entre os militares. O medo da prisão pode ser mais eficiente.

Se a CPI responsabilizar o general e os muitos militares que ele indicou para cargos de chefia no ministério da saúde pela catástrofe que estamos vivendo, se eles responderem judicialmente por isso, talvez o entusiasmo com que muitos aceitam cargos e defendem o governo diminua um pouco.

Tudo isso junto pode ser o bastante para deixar a “ala ideológica” do governo mais isolada, para deixar apenas os fanáticos de zapp seguindo seu líder com convicção (e votando nele em 2022).

Eu sei: é cedo ainda. Muita coisa vai acontecer em um ano.

Uma que não entendo é a insistência do governo em atacar o isolamento social, em ainda chamar de idiota quem tenta evitar a disseminação da covid. Isso é o tipo de coisa que faz até os conservadores mais empedernidos deixarem de segui-lo: é dobrar a aposta depois de já ter perdido.

O público já entendeu que a vacina e o isolamento – sempre que possível – são necessários. Dizer o contrário só discredencia quem diz. É esse tipo de decisão que fará o apoio ao governo diminuir ainda mais nos próximos meses.

O curioso é que – como acontece quase sempre – o governo será derrotado por suas próprias politicas. Os eleitores não vão votar em quem os xinga por se protegerem da covid. Quem xinga está tentando agradar a “ala ideológica”, eu sei. Mas esses votos o governo já tem e, com o discurso anti-isolamento, só o que consegue é perder os outros.

Espero que continue xingando então.

Sólidas construções da “ala ideológica”.

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