Existe felicidade externa líquida?

Para repórteres e editores de jornal, é difícil distinguir algumas cascatas assustadoras de pesquisas acadêmicas sérias. Repórteres são generalistas. Quando um professor de universidade (de uma das mais famosas) diz para um deles que o PIB mede a riqueza do país, ele acredita.

Mas isso não justifica a sucessão de delírios da matéria abaixo. Os repórteres deviam ter consultado alguém que não estivesse só querendo vender peixe (de frescor nível 2), deviam ter consultado alguém isento.

A castata do Butão – tema da matéria de capa do caderno de economia do Estadão de hoje – é uma cascata antiga, ressuscitada sempre que a renda dos países começa a crescer pouco. O nome da cascata: Felicidade Interna Bruta (FIB), é uma referência direta ao Produto Interno Bruto mas, fora a citação, não significa absolutamente nada. Afinal, existe felicidade líquida? E felicidade  interna, quer dizer o quê?

O mais fácil, para dar ideia da sequência de delírios, é comentar a matéria que – me desculpem os autores e editores – é séria candidata ao prêmio de pior do ano, na categoria lobby e propaganda.

Bom, os trecho entre chaves são os comentários, o resto é o texto do jornal:

Índice vai medir felicidade do brasileiro

Metodologia desenvolvida pela FGV-SP leva em conta o grau de preocupação e satisfação da população, deixando a riqueza econômica em segundo plano

A riqueza do País pode começar a ser medida de outra forma [Outra? Mas não há nenhuma medida de riqueza no Brasil hoje. Não se conhece o valor do estoque de ativos – também conhecido como riqueza – do país]. No lugar do Produto Interno Bruto (PIB), a Felicidade Interna Bruta (FIB) [O PIB é uma medida de geração de renda, não de riqueza]. A Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) está empenhada na elaboração da metodologia do novo índice. A intenção é fornecer os resultados ao governo federal para auxiliar no desenvolvimento de políticas públicas [O governo vai pagar por isso? encomendou isso? ou a frase quer dizer que o produto não tem comprador?].

O FIB já existe no Butão, um pequeno reino incrustado nas cordilheiras do Himalaia [com renda per capta de US$ 6mil por ano, ajustada para paridade do poder de compra]. Lá, o contentamento da população é mais importante que o desempenho da produção industrial [só para não deixar dúvida: a produção industrial representa menos de 30% do PIB no Brasil]. O índice pensado pela FGV, no entanto, não será tão radical. “O PIB estará entre os componentes do cálculo”, esclarece Fábio Gallo, professor da FGV-SP que, ao lado de Wesley Mendes, encabeça o desenvolvimento do estudo.

O PIB é considerado por diversos especialistas [quais? especialistas em quê?] um índice incompleto. Dados como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) ou o nível de segurança das cidades não são contabilizados [o PIB mede geração de renda, não qualidade de vida]. Portanto, listar o desempenho dos países pelos bilhões acumulados com produção industrial e comercial [de novo: PIB não é só indústria e comércio, nem é produção: é valor adicionado], por exemplo, é, para esses especialistas, uma distorção da realidade [para ver quanto foi gerado de renda, serve. O número não é uma panacéia, não foi desenhado para ser a medida de todas as coisas].

“Elaborar o índice que queremos é algo complexo. São muitos dados subjetivos [vão usar dados subjetivos? e o resultado, vai ser subjetivo também?] que variam de Estado para Estado”, explica Gallo. Num país do tamanho do Brasil, com regiões muito diferentes, a tarefa fica ainda mais complicada. “Tudo será sob medida para cada uma das regiões [vão usar questionários diferentes em lugares diferentes? e depois dizer que as respostas são comparáveis?]. Dessa forma, chegaremos a bons resultados, que reflitam a situação real do País”, completa Mendes.

Os professores dizem que a inclusão no PIB de gastos feitos para compensar danos ambientais causados pelo setor produtivo distorcem o resultado, uma vez que elevam o total de riqueza do País [riqueza à parte, a renda gerada em atividades ecológicas é menos renda que as outras?]. Outros desembolsos, como para a reconstrução de uma cidade atingida por um desastre natural, também são criticados por entrarem na conta [Um país que gera renda reconstruíndo, então, não deveria ser considerado como gerando mais renda que um igual que deixa tudo em escombros? Os salários dos operários não são renda?] .

O primeiro passo do desenvolvimento da metodologia do FIB já foi dado pela FGV, e mostra que a riqueza econômica não é o principal fator de felicidade da população. Um questionário com jovens adultos de São Paulo e de Santa Maria, pequena cidade no interior do Rio Grande do Sul, mostrou que o índice de satisfação dos jovens gaúchos é 22,5% maior que o dos paulistanos [tenho inveja desse nível de precisão]. Entre os 11 aspectos de vida estudados, os mais relevantes para a percepção de satisfação foram vida social, situação financeira e atividades ao ar livre.

Ainda de acordo com a primeira etapa da pesquisa, a principal preocupação dos paulistanos é com segurança pessoal, enquanto a principal satisfação é com perspectivas de crescimento acadêmico. Entre os gaúchos,a preocupação é com as expectativas de conseguir um bom trabalho. A satisfação é com a boa vida social. “Sociedade feliz é aquela em que todos têm acesso aos serviços básicos de saúde, educação, previdência social, cultura, lazer”, afirma Gallo.